Feliz

Quando eu era criança, eu não era mais feliz do que sou hoje, aliás eu nunca serei mais feliz do que o agora, de onde o meu pensamento se implica ou se aplica em estar, minha felicidade é passageira e continua (e mutuamente confusa) como uma criança.
Ah, minha infância foi muito boa e um pouco solitária, mas talvez eu realmente gostasse de ficar sozinho pulando de um sofá ao outro enquanto me sentia o superman ou o homem-aranha, ou quando eu brincava com os desodorantes de toda a família porque era o que mais se parecia com os microfones sem fio dos cantores de TV e eu achava que o mundo começava na minha casa, exatamente na minha cama, ela era como um ponto de referência mundial, como se todos soubessem onde estão baseados a distância que se encontravam da minha cama e também me sentia feliz quando comia a massa crua das rosquinhas açucaradas que minha mãe fazia com as mediadas que eu lembrava de cor.
Ou quando eu comia todas as guloseimas quando chegávamos das compras e depois tinha que ir ao hospital com dor de barriga, ou quando eu perdia alguma coisa e sentia que São Longuinho era obrigado e me ajudar a achar (e penso isso até hoje, oras, é o trabalho dele), ou quando chorei quando decapitei meu pintinho azul na porta, ou quando minha irmã matou o pintinho rosa dela com trinta e oito gostas de remédio para dor de cabeça.
Eu era feliz quando assistia TV o dia todo porque não tinha aula, ou porque eu queria ser o moço do tempo. Eu era feliz, alias eu sou feliz, só um pouco mais confuso, porque sim, eu era feliz quando pedia bordas brancas na revelação das fotos que tirávamos com a câmera analógica, ou quando nadava, gostava muito de nadar, (nunca o fiz bem) mas achava prazeroso, gostava de deitar na piscina e fechar os olhos e me imaginar na praia, porque nunca gostei de ir a praia de verdade por ser muito publica ou muito salgada ou muito suja, praias não erram meu forte, também não gostava de pescar, porque sempre falei muito e se falasse assustava os peixes, então calado ficava entediado, dormia, perdia o assunto, o peixe a vara e a vontade de pescar.
Mas já gostava de hospitais, sempre foram tediosos, mais passei um bom tempo dentro deles, e lá eu me sentia feliz, bebendo água á toda hora nos filtros automáticos, ou quando ia ao banheiro de três em três minutos para ficar na ponta dos pés para fazer careta no espelho, ou sorrir para o médico quando falava que eu era um belo garoto e que eu não tinha medo de injeção (que eu tinha sim, e tenho até hoje, mais gosto de me sentir forte perto dos outros) e os médicos gostavam de mim, até quando eu estava na maca, nu, para fazer a cirurgia plástica, tentaram me fazer mudar de ideia, pois falavam que eu era bonito daquele jeito, aliás, sempre gostei de ser elogiado, e elogios nunca faltavam, lembro que me deixava feliz ser notado, na primeira ou segunda série, quando íamos fazer um musical com uma música do Roberto, e alguns alunos seriam as palavras, outros os dançarinos e um único seria Jesus. Eu entrei na fila para ser um dos que dançavam, mais quando descobri que Jesus tinha uma fala só dele, mudei de ideia sobre meu personagem, no teste tinhas uns quatro meninos que queriam ser Jesus, mais o Jesus fui eu, lembro bem eu entrava com um microfone sem fio, uma túnica branca, sem os dois dentes da frente e dizia : "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados!" e saía, fim, mas ali começou o meu narcisismo por quão perfeito tudo o que eu faço sai, porque eu sempre sou o orador, o representante, o principal, e provavelmente eu devo ter chorado por não ter sido o protagonista em peças da escola, mais não lembro de nenhuma agora.
Mas isso não me torna mais feliz ou infeliz que hoje, acho que tudo o que poderia acontecer, aconteceu e isso acrescentou grandes coisas na minha vida das quais eu não vou entender, mas hoje se me perguntassem se eu fui, sou ou serei mais feliz, eu responderei que fui, sou e serei mais feliz sempre, independente se o que importa é se eu consigo cuidar de um peixe, se eu sou o principal numa peça, se eu beijei o garoto que eu queria, se eu tenho a roupa que eu acho a minha cara, se eu paguei a divida do telefone, se minha empresa é a numero um do ranking, se eu consigo cozinhar cantando, ou se eu tenho um grande charme aos cinquenta, é que minha felicidade se resume em ser igual e suprema em todos os meus momentos.